quarta-feira, 4 de junho de 2014

O heroico Macunaíma

Macunaíma  surge  no  livro  de  Mário  de  Andrade  como  um  herói  –  já  na  primeira  linha  do  livro  é apresentado como um, e ainda, um herói brasileiro:

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente.”
      
Para  que  Macunaíma  fosse  considerado  um  herói  nos  moldes  clássicos,  ele  precisaria  dedicar  sua existência  a  um  objetivo ,  a  uma  busca  ou  a  uma  aventura.  Porém,  são  poucas  as  atitudes  da  personagem que  sugerem  ter  ele  um  objetivo  a  ser  seguido  durante  todo  o  livro .  No  entanto ,    a  busca  pela  pedra muiraquitã, presente  de  Ci,  sua  amada,  exerce  na  narrativa  a  mesma  função  das  buscas  heroicas  clássicas .
Apresentada  no  quarto  capítulo ,  é  essa  busca  que  fará  com  que  Macunaíma  vá  para  São  Paulo  e  enfrente Venceslau  Pietro  Pietra,  passando  por  diversas  aventuras  e  situações,  que  o  conduzirão  para  o  desfecho da  história.  Nesse  caminho ,  Macunaíma  passa  por  muitas  provas,  que  apenas    por  meio  dos  valores  do povo que representa poderiam ser vencidas .
O  título  completo da obra de Mário de Andrade  é Macunaíma –  herói  sem  nenhum  caráter. Os  substantivos “herói”  e  “caráter”  usados  para  definir  a  mesma  personagem  causam  uma  certa  estranheza, principalmente,  ao  se  considerar  as  características  do  herói  clássico , aquele que representa  as  virtudes  e  valores  morais  de  um povo .    Sendo  assim,  como  seria  possível  um  herói  não  possuir  caráter?  O  subtítulo  de  Macunaíma  é ambíguo  e,  portanto ,  gera  várias  interpretações:    a  mencionada  falta  de  caráter  pode  significar  tanto  a ausência  de  características  definidas  quanto  levar  a  uma  discussão  em  termos morais,  isto  é,  a  respeito  do fato de a personagem possuir ou não bom caráter .
         Caso  se  considere  que  Macunaíma  não  tem  caráter,  ele  seria  representante  da  miscigenação  racial  e cultural  que  constitui  o  Brasil,  como  afirma  o  próprio  autor  em  um  dos  prefácios  do  livro:"O  brasileiro não  tem  caráter  porque  não  possui  nem  civilização  própria  nem  consciência  tradicional.  Os  franceses tem  caráter  e  assim  os  jorubas  e  os  mexicanos”.        Um  trecho  da  obra  ilustra  essa  “mistura”  como causadora da falta de caráter, no sentido de uma característica única:

"No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio . Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma".

        Nessa  passagem,  vemos  que  o  brasileiro  –  povo  que  o  herói  Macunaíma está  representando  –  é  descrito  como  um  sujeito  capaz  de  se  transformar para  se  adaptar  às  situações,  o  que  permite  que,  para  se  dar  bem,  o  herói mude  a  sua  consciência.  Toda  essa  instabilidade  de  Macunaíma  pode  ser interpretada  como  falta  de  identidade,  ou  seja,  falta  de  características definidoras do que seja um herói representativo da nação brasileira.
           Outra  possibilidade  de  interpretação  do  subtítulo  do  livro  está  no  exame da  etimologia  da  palavra  Macunaíma,  que  significa  “grande  mau”.    É possível  interpretar  o  termo  como  uma  alusão  à  ausência  de  integridade  do protagonista, à ausência de um “bom caráter”.
      Nesse  sentido ,  Macunaíma  seria  um  herói  às  avessas,  pois,  suas características  não  exaltam  os  valores  nobres  de  seu  povo ,  podendo ,  a partir  disso ,  ser  considerado  um  anti-herói.

Macunaíma e o anti-herói

 Durante  o filme  Macunaíma  você  deve  ter  percebido  que  em  algumas  cenas  a  personagem  age de  forma  duvidosa,  ou  seja,  suas  atitudes  não  lembram  nem  um  pouco  as  ações  dos  heróis tradicionais .  Cabe  a  pergunta:  afinal,  Macunaíma  é  um  herói  ou  um  anti-herói?  Antes  de  analisarmos  o que  separa  a personagem  do  herói  e  o  que  o  aproxima  do  anti-herói  vamos  primeiro  trazer  algumas informações sobre esse conceito de anti-herói.
De  acordo  com  Massaud  Moisés,  em  “Dicionário  de  Ter mos  Literários”,  o  anti-herói  não  deve  ser confundido  com  uma  personagem  que  se  caracteriza  pelos  seus defeitos,  mas  sim  como  aquela personagem  que  se  aproxima  das  pessoas  comuns,  em  oposição  à  figura  do  herói.  Enquanto  o  herói  é caracterizado  pela  grandeza  de  suas  ações,  o  anti-herói  é  aquele  que  minimiza  ou  rebaixa  suas  ações,  ou ainda, suas ações se aproximam daquelas que nos lembram seres humanos comuns
 O  aparecimento  do  anti-herói  na  literatura  começa  através  de  um processo  de  humanização  do  herói,  que  deixa  de  ser  uma  personagem  capaz  de  realizar  façanhas  sobre-humanas  e  passa  a  apresentar  dúvidas, fraquezas  e  defeitos  como  uma  pessoa  comum,  especialmente  a  partir  do romance  no  século  XVIII.  Esse  processo  também  abre  espaço  para  que representantes  de  todas  as  classes  sociais  comecem  a  tomar  o  lugar  dos heróis como protagonistas na literatura.
Se  por  um  lado  Macunaíma  se  aproxima  de  um  herói  clássico  por representar  um  povo ,  especialmente  se  pensarmos  na  epopeia  antiga,  por outro  se  afasta  pelas  atitudes  que  toma  durante  o  livro  que  pouco lembram  as  ações  dos  heróis  da  literatura.  Toda  essa  contradição  nos  faz aproximar  Macunaíma  de  um  anti-herói. Vejamos  o  seguinte  trecho  do capítulo "Tequeteque, chupinzão e a injustiça dos homens":

“O ticotico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia de um lado pra outro sempre acompanhado do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra ele. Fazia raiva. E o ticotiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era. Então voava, arranjava um decumê por aí e botava no bico do chupinzão . (...) O ticotiquinho ficava azaranzado porque estava padecendo fome e aquele nhenhém-nhenhe-nhém azucrinando ele atrás, diz-que "Telo decumê!...Telo decumê!..." não podia com o amor sofrendo . Largava de si, voava buscar um bichinho uma quirerinha, todos esses decumês, botava no bico do chupinzão, chupinzão engolia e principiava atrás do ticotiquinho outra vez. Macunaíma estava meditando na injustiça dos homens e teve um amar gorimenso da injustiça do chupinzão . Era porque Macunaíma sabia que de primeiro os passarinhos foram gente feito nós...Então o herói pegou um porrete e matou o ticotiquinho”

 Notamos  nesse  trecho  que  algumas  ações  da  personagem  o  distanciam  do  herói  clássico .  Por exemplo ,  no  trecho  acima  dificilmente  um  herói  ao  ver  a  “injustiça  do  chupinzão”  acabaria  matando  o ticotiquinho  –  a  princípio ,  o  pássaro  inocente  ou  vítima  entre  os  dois .  Outras  ações  de  Macunaíma também  afastam  o  personagem  da  condição  de  herói,  especialmente  no  que  se  refere  ao comportamento  da  personagem  em  relação  à  grande  parte  das  mulheres,  basta  nos  lembrarmos  do primeiro capítulo no qual Macunaíma mantém relações escondidas com a mulher de seu ir mão Jigüê.
Outro  aspecto  importante  de  se  ressaltar  que  aproxima  a  personagem  do  anti-herói  e  que  aparece neste  trecho  da  obra  são  as  dúvidas  e  questionamentos  que  Macunaíma  faz  a  respeito  da  “injustiça  dos homens”.  Os  sentimentos  demonstrados  pela  personagem  a  aproximam  ainda  mais  de  um  ser  humano comum e não mais do herói, que tradicionalmente não faz ou tem esses tipos de questionamentos .

Macunaíma: Livro Vs. Filme

Vamos estabelecer uma breve comparação entre o livro de Mário de Andrade e o filme de Joaquim Pedro de Andrade.
 As  duas  obras  foram  produzidas  em  momentos  distintos  da  história  brasileira.    No  entanto ,  uma aproximação ,  importante  para  entender  o  processo  da  adaptação ,  pode  ser  feita  entre  as  duas  épocas: tanto  o  Modernismo ,  no  início  do  século ,  quanto  o  Cinema  Novo ,  na  década  de  60,  se  preocuparam  em discutir  a  formação  social  e  a  identidade  do  povo  brasileiro .  A  principal  diferença,  neste  sentido ,  se
encontra  no  engajamento  político  e  no  desejo  de  proporcionar  mudanças  sociais  do  grupo  artístico  da década de 1960.
 As  aproximações  entre  as  duas  gerações  mencionadas  podem  ser  percebidas  com  facilidade  nas representações  da  personagem  Macunaíma  que  encontramos  no  livro  e  no  filme.              A  caracterização  do herói  é  essencial  para  o  debate  sobre  o  nacional  nas  duas  obras,  pois a presença  de  um  herói  pressupõe  a  apresentação  de  características  e  aspectos  típicos  de  um  determinado povo .
Para  entender  um  pouco  melhor  as  transformações  pelas  quais  o  livro  de  Mário  de  Andrade passou  ao  ser  adaptado  para  o  cinema,  vale  a  pena  discutir  o  seguinte  comentário  do  próprio  diretor sobre o filme:

“ Acho que o personagem, no livro, é mais gentil do que no filme, assim como o filme é mais agressivo, feroz, pessimista, do que o livro amplo, livre, alegre e melancólico de Mário de Andrade. Para ser justo, considero o filme um comentário do livro .”
         
O depoimento de  Joaquim Pedro  explicita  a  questão da  fidelidade entre o filme e o livro.  O  comentário  do  diretor  demonstra  consciência  sobre  os  limites  de  sua  proposta.  Ao  afirmar que  o  seu  trabalho  é  um  “comentário  crítico”  do  livro,  o  diretor  explicita  que  a  adaptação  não  pretende ser  cópia,  mas  uma  recriação,  na  qual  toma  forma  uma  das  possíveis  interpretações  do  livro  Macunaíma, no caso, a escolhida por Joaquim Pedro de Andrade. Além  disso ,  o  comentário  é  importante,  pois,  apresenta  uma  espécie  de  resumo  das  principais diferenças  entre  a  adaptação  cinematográfica  e  a  obra  literária:  o  herói  Macunaíma  é  mostrado ,  no  filme, como  a  representação  do  mal,  o  que  elimina  as  nuances  concebidas  em  seu  caráter  na  obra  de  Mário  de Andrade.  Para  visualizar  melhor  as  modificações,  vamos  comparar  um  trecho  do  filme  com  a  cena correspondente do filme.

Trecho do livro:
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.”

Foto e cena do filme Macunaíma




No  trecho  do  livro  a  personagem Macunaíma  é  apresentada  ao  público  de  for ma  solene,    pois,  logo  na primeira  frase  já  é  anunciado  o  epíteto  de  “herói  de  nossa  gente”.  Além  disso ,  a  descrição  tanto  do cenário  quanto  do  herói  que  acabou  de  nascer  é  bastante  abstrata:  tem-se  informações  de  que  se  situa  sesitua  no  “fundo  do  mato   virgem”  e  fica  próximo  ao  rio  Uraricoera.  Sobre  Macunaíma,  sabe-se  que  é “preto  retinto  e  filho  do  medo  e  da  noite”;  no  período  seguinte,  informa-se  o  leitor  de  que  o  recém nascido  é  “uma  criança  feia”.  Tal  informação  contrasta  com  a  anterior,  na  qual,  por  meio ,  de  uma  frase com  adjetivos  preciosos  o  herói  é  apresentado  em  tom  elevado .  No  entanto,  sabe-se  disso  por  meio  da voz  vaga  de  um  narrador  em  terceira  pessoa,  ou  seja,  fica  aberta  ao  leitor  a  construção  visual  da  cena narrada.  Por  fim,  nem  mesmo  o  batismo  do  protagonista  permite  uma  visualização  concreta,  uma  vez que não se sabe quem o nomeia, sabe-se apenas que lhe chamaram de Macunaíma.
A  sensação  de  alusão  vaga  não  permanece  no  filme  de  Joaquim  Pedro  de  Andrade,  pois,  ao contrário  da  literatura  que  apenas  sugere,  o  cinema  mostra,  ou  seja,  as  imagens  trazem  um  sentido  mais concreto .  Assim,  logo  no  início ,  a  câmera  focaliza  o  cenário  do  nascimento  de  Macunaíma:  destacando  a terra  e  a  vegetação  em  verde  e  amarelo .  As  cores  da  bandeira  presentes  no  cenário  se  aliam  à  trilha sonora,  cujo  refrão  é  “glória  aos  homens-heróis  dessa  pátria,  a  terra  feliz  do  Cruzeiro  do  Sul”.  A repetição  constante  desse  hino ,  composto  pelo  músico  Villa-Lobos,  prepara  o  espectador  para  a apresentação  de  uma  cena  que  eleve  as  características  do  Brasil.  No  entanto ,  essa  primeira  expectativa  é quebrada  no  momento  em  que  se    um  close  no  rosto  da   índia  parindo  Macunaíma:  cena  representada de forma bastante cômica pelo ator Paulo José, que de forma debochada exclama: “Pronto , nasceu. ”.   
                             Aliás,  toda  a  cena  do  nascimento  de  Macunaíma  é  cômica,  chegando  a  beirar  o  ridículo .  A apresentação  debochada  do  nascimento  do  herói  é  corrente  com  a  interpretação  da  obra  que  o  diretor quer  construir .  João  Pedro,  ao  filmar  Macunaíma,  definiu  que  o  herói  sem  nenhum  caráter  é  aquele  que não possui  valores morais .    Sua  escolha  fica  clara quando  a  índia nomeia o  filho:  “Fica  sendo Macunaíma (À  parte,  para  os  espectadores).-  Nome  que  começa  com  ma  tem  má  sina. ”     

Contexto histórico do Modernismo no Brasil

O Modernismo no Brasil

Mário  de  Andrade  escreveu  Macunaíma  em  um  período  de  grandes  mudanças  sociais  no  Brasil,  a
que  muitos  historiadores  nomeiam  Modernismo .  Esse  período  é  marcado  por  uma  revolução  no
pensamento  da  época,  impulsionada  por  diversos  fatos  históricos  que  modificaram  a  organização  social
brasileira.  Entre  essas  mudanças  é  possível  destacar  o  desenvolvimento  urbano  que  consolidou  a
formação  de  uma  classe  média  e  proporcionou  a  formação  de  grupos  sociais  de  interesses,  lutas  e  visões
de  mundo  específicos,  como  aqueles  que  protagonizaram  o  Tenentismo ,  A  revolta  da  Chibata  e  a  Greve
de 1917.
É  possível  ver  em  Macunaíma  muitos  elementos  dessa  transformação .  Dentre  elas,  a  que  mais  costuma
chamar  atenção  é  a  importância  que  o  desenvolvimento  urbano  e  tecnológico  da  cidade  de  São  Paulo
tem  no  livro .  É  para  São  Paulo  que  Macunaíma  deseja  que  seu  filho  vá  para  trabalhar  assim  que  crescer,
provavelmente  uma  alusão  às  correntes  migratórias  que  surgiram  no  Brasil  ocasionadas  pela  grande
oferta  de  emprego  que  apareceram  nos  centros  urbanos  devido  o  processo  de  desenvolvimento
industrial.  E,  em  outro  momento ,  a  cidade  e  as  suas  características  singulares  são  tema  da  carta  que
Macunaíma  escreve  às  Icamiabas,  ressaltando  seus  elementos  tecnológicos  que  aparecem  no
desenvolvimento urbano e os costumes da população da cidade.
No  campo  cultural,  sob  forte  influência  dos  movimentos  artísticos  vindos,  sobretudo ,  da  França,
denominados  Vanguardas  Europeias ,  essa  revolução  teve  como  marco  inicial  a  organização  da  Semana
da  Arte  Moderna,  em  1922.  Assim,  produziu-se  em  território  nacional  um  grande  número  de  obras  de
diversas  linguagens  (artes  plásticas,  musicais,  literárias),  revistas  e  jornais  literários  (muitas  vezes  de  curta
vida  útil)  e  manifestos  que  tinham  como  objetivo  comum  a  proposta  de  uma  produção  artística  que
rompesse com as velhas tradições e consolidasse uma identidade verdadeiramente nacional.
Assim  deu-se  início  ao  desenvolvimento  de  um  projeto  do  qual  participaram  grandes  artistas  que
compõem  hoje  o  cânone  nacional  e  mundial.  Esse  projeto  acabou  dividindo-se  em  vertentes  que,  apesar
do  objetivo  comum,  costumavam  divergir,  sobretudo ,  quanto  ao  ponto  de  vista  de  uma  criação  de
identidade nacional.

Manifesto antropófago

Manifesto Antropofágico                                                            Fonte: http://www.infoescola.com/literatura/manifesto-antropofagico/


 
 
Antropófago ou Antropofágico foi um manifesto literário escrito por Oswald de Andrade, publicado em maio de 1928, que tinha por objetivo repensar a dependência cultural brasileira.

O Manifesto foi publicado na primeira edição da Revista de Antropofagia, meio de comunicação responsável pela difusão do movimento antropofágico brasileiro. A linguagem do manifesto é majoritariamente metafórica, contendo fragmentos poéticos bem-humorados e torna-se a fonte teórica principal do movimento.

Oswald utiliza durante o desenvolvimento do manifesto, teorias de diversos autores e pensadores mundiais, como Freud, Marx, Breton, Francis Picabia, Rousseau, Montaigne e Hermann Keyserling. Combinadas as idéias destes autores e a ideologia desenvolvida por Oswald, retomam-se características dos primórdios da formação cultural brasileira: a combinação das culturas primitivas (indígena e africana) e da cultura latina, formada pela colonização européia. E forma-se o conceito errôneo de caracterizar, perante a colonização, o selvagem como elemento agressivo.

A intenção de promover o resgate da cultura primitiva é notável no manifesto, e o autor o faz por meio de um processo não harmonioso de tentar promover a assimilação mútua por ambas as culturas. Oswald, no entanto, não se opõe drasticamente à civilização moderna e industrializada, mas propõe um certo tipo de cautela ao absorver aspectos culturais de outrem, para que a modernidade não se sobreponha totalmente às culturas primitivas. E também, para que haja maior cuidado ao absorver a cultura de outros lugares, para que não haja absorção do desnecessário e a cultura brasileira vire um amontoado de fragmentos de culturas exteriores.

No decorrer do manifesto o autor reconta, metaforicamente, a História do Brasil, associando figuras como Padre Vieira, Anchieta, a Mãe dos Gracos, a corte de D. João VI, a Moral da Cegonha à potência mítica de Jabuti, Guaraci, Jaci e da Cobra Grande. Oswald caracteriza como “idade de ouro” a época do Brasil não colonizado, com sua própria língua e cultura.

O Manifesto Antropofágico foi um marco no Modernismo brasileiro, pois não somente mudou a forma do brasileiro de encarar o fluxo de elementos culturais do mundo, mas também colocou em evidência a produção própria, a característica brasileira na arte, ascendendo uma identidade tupiniquim no cenário artístico mundial.

MANIFESTO       ANTROPÓFAGO

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.


OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)