Leia o texto "O homem que sabia javanês", de Lima Barreto e reflita sobre esses temas. Pense na incompetência burocrática do país, nos status alcançados por aparência, nos muitos casos que você já deve ter presenciado de pessoas competentes sendo substituídas por outras que tem pouco conhecimento a respeito do cargo que ocupará. Pense ainda no porquê da maioria dos candidatos políticos que não tem muitas condições aquisitivas ou não possuem "padrinhos" não conseguirem se eleger, enquanto outros, que exploram o estado que governam,se mantém no poder. Por que as pessoas acreditam em políticos que roubaram dinheiro público "descaradamente" a ponto de elegê-lo novamente?
Para ajudá-lo nessa reflexão sobre a política brasileira, tente relacionar o texto de Lima Barreto "O homem que sabia javanês" ao seguinte vídeo.
http://www.youtube.com/watch?v=mIyELbDl58k
Confira também a entrevista do ex-presidente Fernando Collor.
http://www.youtube.com/watch?v=vfpLlOvHfEY
Se você quiser ler essa narrativa em quadrinhos, click no link a seguir.
http://www.ebah.com.br/content/ABAAABgpMAG/hq-homem-que-sabia-javanes-lima-barreto
O Homem Que
Sabia Javanês
Lima Barreto
EM UMA confeitaria, certa vez, ao meu
amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às
respeitabilidades, para poder viver.
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando
estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel,
para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de
feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado,
embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da
conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
- Tens levado uma vida bem engraçada,
Castelo!
- Só assim se pode viver... Isto de uma
ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não
achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!
- Cansa-se; mas, não é disso que me
admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste
Brasil imbecil e burocrático.
- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se
podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de
javanês!
- Quando? Aqui, depois que voltaste do
consulado?
- Não; antes. E, por sinal, fui nomeado
cônsul por isso.
- Conta lá como foi. Bebes mais
cerveja?
- Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa,
enchemos os copos, e continuei:
- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio
estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de
pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio
o anuncio seguinte:
"Precisa-se de um professor de
língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma
colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras,
ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor
de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis
com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional.
Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao
porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande
Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a
língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que
Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o
javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía uma literatura
digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.
A Encyclopédie dava-me
indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar
um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas
ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos;
de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia
estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a
escrevê-los.
À noite, quando pude entrar em casa sem
ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no
quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito
que, de manhã, o sabia perfeitamente.
Convenci-me que aquela era a língua
mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o
encarregado dos aluguéis dos cômodos:
- Senhor Castelo, quando salda a sua
conta?
Respondi-lhe então eu, com a mais
encantadora esperança:
- Breve... Espere um pouco... Tenha
paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...
Por aí o homem interrompeu-me:
- Que diabo vem a ser isso, Senhor
Castelo?
Gostei da diversão e ataquei o
patriotismo do homem:
- É uma língua que se fala lá pelas
bandas do Timor. Sabe onde é?
Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se
da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:
- Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi
dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe
isso, Senhor Castelo?
Animado com esta saída feliz que me deu
o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente
propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal
e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus
estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar
o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou
se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que
ia ensinar.
Ao cabo de dois dias, recebia eu uma
carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de
Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que numero. E preciso não
te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal
javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também
perguntar e responder "como está o senhor?" - e duas ou três regras
de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.
Não imaginas as grandes dificuldades
com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil -
podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, Com
maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da
casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha
vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...
Era uma casa enorme que parecia estar
deserta; estava mal tratada, mas não sei porque me veio pensar que nesse mau
tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia
haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado,
daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali,
como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança
vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as
begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores
mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano,
cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de
velhice, doçura e sofrimento.
Na sala, havia uma galeria de retratos:
arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas
molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques,
pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas,
daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e
respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou
da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade
do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto
tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos
fatigados dos velhos desiludidos...
Esperei um instante o dono da casa.
Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente
o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de
ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime
mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma
coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.
- Eu sou, avancei, o professor de
javanês, que o senhor disse precisar.
- Sente-se, respondeu-me o velho. O
senhor é daqui, do Rio?
- Não, sou de Canavieiras.
- Como? fez ele. Fale um pouco alto,
que sou surdo, - Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu. - Onde fez os seus
estudos?
- Em São Salvador.
- Em onde aprendeu o javanês? indagou
ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.
Não contava com essa pergunta, mas
imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês.
Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas
proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele
que aprendi javanês.
- E ele acreditou? E o físico?
perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.
- Não sou, objetei, lá muito diferente
de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele
basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem
que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches,
até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.
- Bem, fez o meu amigo, continua.
- O velho, emendei eu, ouviu-me
atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de
fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:
- Então está disposto a ensinar-me
javanês?
- A resposta saiu-me sem querer: - Pois
não.
- O senhor há de ficar admirado, aduziu
o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer
coisa, mas...
- Não tenho que admirar. Têm-se visto
exemplos e exemplos muito fecundos... ? .
- O que eu quero, meu caro senhor...
- Castelo, adiantei eu.
- O que eu quero, meu caro Senhor
Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou
neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou.
Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha
grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em
agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô,
chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em
javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para
quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres
que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o
entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz”. Meu pai, continuou o velho
barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da
morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz
da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a
esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto
desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me 1embrei do
talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os
meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo,
é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho
se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria
ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e
explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha
casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de
saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço,
um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes
letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não
se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio,
escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga,
escritor javanês de muito mérito.
Logo informei disso o velho barão que,
não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta
consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de
quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos
as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o
tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco, dava a minha primeira
lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a
distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto
levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da
matéria: aprendia e desaprendia.
A filha e o genro (penso que até aí
nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não
se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.
Mas com o que tu vais ficar assombrado,
meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de
javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro!
Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!”
O marido de Dona Maria da Glória (assim
se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso;
mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu
javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses,
desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não,
um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha
que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e
cumpria o encargo.
Sabes bem que até hoje nada sei de
javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo
do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!...
Ficava extático, como se estivesse a
ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de
presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.
Contribuiu muito para isso o fato de
vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em
Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a
crê-lo também.
Fui perdendo os remorsos; mas, em todo
o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o
tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou
com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia.
Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu
aspecto tagalo. - "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe
javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com
diversas recomendações. Foi um sucesso.
O diretor chamou os chefes de secção:
"Vejam só, um homem que sabe javanês - que portento!"
Os chefes de secção levaram-me aos
oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com
inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não
há quem o saiba aqui!"
O tal amanuense, que me olhou com ódio,
acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?"
Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as
mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou:
"Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o
tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me
o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se
presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga,
mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica
adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai
representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o
Max Müller, e outros!"
Imagina tu que eu até aí nada sabia de
javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de
sábios.
O velho barão veio a morrer, passou o
livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade
conveniente e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã no estudo das línguas
maleo-polinésicas; mas não havia meio!
Bem jantado, bem vestido, bem dormido,
não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas
esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et
Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico
Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados
apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês”.Nas
livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal
jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais
citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de
entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do
Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa
antiga e moderna...
- Como, se tu nada sabias?
interrompeu-me o atento Castro.
- Muito simplesmente: primeiramente,
descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de
geografias, e depois citei a mais não poder.
- E nunca duvidaram? perguntou-me ainda
o meu amigo.
- Nunca. Isto é, uma vez quase fico
perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só
falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia.
Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia,
naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças
à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia
de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês - uf!
Chegou, enfim, a época do congresso, e
lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões
preparatórias. Inscreveram-me na secção do tupi-guarani e eu abalei para Paris.
Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu
retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente
pediu-me desculpas por me ter dado aquela secção; não conhecia os meus
trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava
naturalmente indicada a secção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até
hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar,
conforme prometi.
Acabado o congresso, fiz publicar
extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e
Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido
pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que
me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e
bom Barão de Jacuecanga.
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro.
Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma
ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias depois,
convidava-me para almoçar em sua companhia.
Dentro de seis meses fui despachado
cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de
aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
- É fantástico, observou Castro,
agarrando o copo de cerveja.
- Olha: se não fosse estar contente,
sabes que ia ser?
- Que?
- Bacteriologista eminente. Vamos?
- Vamos.