Macunaíma
surge no livro
de Mário de
Andrade como um
herói – já
na primeira linha
do livro é apresentado como um, e ainda, um herói
brasileiro:
“No fundo do
mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente.”
Para que Macunaíma
fosse considerado um
herói nos moldes
clássicos, ele precisaria
dedicar sua existência a
um objetivo , a
uma busca ou
a uma aventura.
Porém, são poucas
as atitudes da
personagem que sugerem ter
ele um objetivo
a ser seguido
durante todo o
livro . No entanto ,
a busca pela
pedra muiraquitã, presente
de Ci, sua
amada, exerce na
narrativa a mesma
função das buscas
heroicas clássicas .
Apresentada
no quarto capítulo ,
é essa busca
que fará com
que Macunaíma vá
para São Paulo
e enfrente Venceslau Pietro
Pietra, passando por
diversas aventuras e
situações, que o
conduzirão para o
desfecho da história. Nesse
caminho , Macunaíma passa
por muitas provas,
que apenas por
meio dos valores
do povo que representa poderiam ser vencidas .
O título completo da obra de Mário de Andrade é Macunaíma –
herói sem nenhum
caráter. Os substantivos
“herói” e “caráter”
usados para definir a
mesma personagem causam
uma certa estranheza, principalmente, ao
se considerar as
características do herói
clássico , aquele que representa
as virtudes e
valores morais de um
povo . Sendo assim,
como seria possível
um herói não
possuir caráter? O
subtítulo de Macunaíma
é ambíguo e, portanto ,
gera várias interpretações: a
mencionada falta de
caráter pode significar
tanto a ausência de
características definidas quanto
levar a uma
discussão em termos morais, isto
é, a respeito
do fato de a personagem possuir ou não bom caráter .
Caso se considere
que Macunaíma não
tem caráter, ele
seria representante da
miscigenação racial e cultural
que constitui o
Brasil, como afirma
o próprio autor
em um dos
prefácios do livro:"O
brasileiro não tem caráter
porque não possui
nem civilização própria
nem consciência tradicional.
Os franceses tem caráter
e assim os
jorubas e os
mexicanos”. Um
trecho da obra
ilustra essa “mistura”
como causadora da falta de caráter, no sentido de uma característica
única:
"No
outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado Maanape
foi no mato e Jiguê foi no rio . Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e
deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na
ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum
hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma".
Nessa passagem, vemos
que o brasileiro
– povo que
o herói Macunaíma está representando
– é descrito
como um sujeito
capaz de se
transformar para se adaptar
às situações, o
que permite que,
para se dar
bem, o herói mude
a sua consciência.
Toda essa instabilidade
de Macunaíma pode
ser interpretada como falta
de identidade, ou
seja, falta de
características definidoras do que seja um herói representativo da nação
brasileira.
Outra possibilidade de
interpretação do subtítulo
do livro está
no exame da etimologia
da palavra Macunaíma,
que significa “grande
mau”. É possível interpretar
o termo como
uma alusão à
ausência de integridade
do protagonista, à ausência de um “bom caráter”.
Nesse sentido ,
Macunaíma seria um
herói às avessas,
pois, suas características não
exaltam os valores
nobres de seu
povo , podendo , a partir
disso , ser considerado
um anti-herói.
Macunaíma e o anti-herói
Durante o filme
Macunaíma você deve
ter percebido que
em algumas cenas
a personagem age de
forma duvidosa, ou
seja, suas atitudes
não lembram nem um pouco
as ações dos
heróis tradicionais . Cabe a
pergunta: afinal, Macunaíma
é um herói
ou um anti-herói?
Antes de analisarmos
o que separa a personagem
do herói e
o que o
aproxima do anti-herói
vamos primeiro trazer
algumas informações sobre esse conceito de anti-herói.
De acordo com
Massaud Moisés, em
“Dicionário de Ter mos
Literários”, o anti-herói
não deve ser confundido com
uma personagem que
se caracteriza pelos
seus defeitos, mas sim
como aquela personagem que
se aproxima das
pessoas comuns, em
oposição à figura
do herói. Enquanto
o herói é caracterizado pela
grandeza de suas
ações, o anti-herói
é aquele que
minimiza ou rebaixa
suas ações, ou ainda, suas ações se aproximam daquelas
que nos lembram seres humanos comuns
O aparecimento
do anti-herói na
literatura começa através
de um processo de
humanização do herói,
que deixa de
ser uma personagem
capaz de realizar
façanhas sobre-humanas e
passa a apresentar
dúvidas, fraquezas e defeitos
como uma pessoa
comum, especialmente a
partir do romance no
século XVIII. Esse
processo também abre
espaço para que representantes de
todas as classes
sociais comecem a
tomar o lugar
dos heróis como protagonistas na literatura.
Se por um
lado Macunaíma se
aproxima de um
herói clássico por representar um
povo , especialmente se
pensarmos na epopeia
antiga, por outro se
afasta pelas atitudes
que toma durante
o livro que
pouco lembram as ações
dos heróis da
literatura. Toda essa
contradição nos faz aproximar
Macunaíma de um
anti-herói. Vejamos o seguinte
trecho do capítulo
"Tequeteque, chupinzão e a injustiça dos homens":
“O ticotico
era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia de um lado pra outro
sempre acompanhado do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra ele. Fazia
raiva. E o ticotiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era.
Então voava, arranjava um decumê por aí e botava no bico do chupinzão . (...) O
ticotiquinho ficava azaranzado porque estava padecendo fome e aquele
nhenhém-nhenhe-nhém azucrinando ele atrás, diz-que "Telo decumê!...Telo
decumê!..." não podia com o amor sofrendo . Largava de si, voava buscar um
bichinho uma quirerinha, todos esses decumês, botava no bico do chupinzão,
chupinzão engolia e principiava atrás do ticotiquinho outra vez. Macunaíma
estava meditando na injustiça dos homens e teve um amar gorimenso da injustiça
do chupinzão . Era porque Macunaíma sabia que de primeiro os passarinhos foram
gente feito nós...Então o herói pegou um porrete e matou o ticotiquinho”
Notamos nesse trecho
que algumas ações
da personagem o
distanciam do herói
clássico . Por exemplo , no
trecho acima dificilmente
um herói ao
ver a “injustiça
do chupinzão” acabaria
matando o ticotiquinho –
a princípio , o
pássaro inocente ou
vítima entre os
dois . Outras ações
de Macunaíma também afastam
o personagem da
condição de herói,
especialmente no que
se refere ao comportamento da
personagem em relação
à grande parte
das mulheres, basta
nos lembrarmos do primeiro capítulo no qual Macunaíma mantém
relações escondidas com a mulher de seu ir mão Jigüê.
Outro
aspecto importante de
se ressaltar que
aproxima a personagem
do anti-herói e
que aparece neste trecho
da obra são as dúvidas
e questionamentos que
Macunaíma faz a
respeito da “injustiça
dos homens”. Os sentimentos
demonstrados pela personagem
a aproximam ainda
mais de um
ser humano comum e não mais do
herói, que tradicionalmente não faz ou tem esses tipos de questionamentos .
Macunaíma: Livro Vs. Filme
Vamos estabelecer uma breve comparação entre o livro
de Mário de Andrade e o filme de Joaquim Pedro de Andrade.
As duas
obras foram produzidas
em momentos distintos
da história brasileira.
No entanto , uma aproximação , importante
para entender o
processo da adaptação ,
pode ser feita
entre as duas
épocas: tanto o Modernismo ,
no início do
século , quanto o
Cinema Novo , na
década de 60,
se preocuparam em discutir
a formação social
e a identidade
do povo brasileiro .
A principal diferença,
neste sentido , se
encontra
no engajamento político
e no desejo
de proporcionar mudanças
sociais do grupo
artístico da década de 1960.
As aproximações
entre as duas
gerações mencionadas podem
ser percebidas com
facilidade nas
representações da personagem
Macunaíma que encontramos
no livro e
no filme. A
caracterização do herói é
essencial para o
debate sobre o
nacional nas duas
obras, pois a presença de
um herói pressupõe
a apresentação de
características e aspectos
típicos de um
determinado povo .
Para
entender um pouco
melhor as transformações pelas
quais o livro
de Mário de
Andrade passou ao ser
adaptado para o
cinema, vale a
pena discutir o
seguinte comentário do
próprio diretor sobre o filme:
“ Acho que o
personagem, no livro, é mais gentil do que no filme, assim como o filme é mais
agressivo, feroz, pessimista, do que o livro amplo, livre, alegre e melancólico
de Mário de Andrade. Para ser justo, considero o filme um comentário do livro
.”
O depoimento de
Joaquim Pedro explicita a
questão da fidelidade entre o
filme e o livro. O comentário
do diretor demonstra
consciência sobre os
limites de sua
proposta. Ao afirmar que
o seu trabalho
é um “comentário
crítico” do livro,
o diretor explicita
que a adaptação
não pretende ser cópia,
mas uma recriação,
na qual toma
forma uma das
possíveis interpretações do
livro Macunaíma, no caso, a
escolhida por Joaquim Pedro de Andrade. Além
disso , o comentário
é importante, pois,
apresenta uma espécie
de resumo das
principais diferenças entre a
adaptação cinematográfica e
a obra literária:
o herói Macunaíma
é mostrado , no
filme, como a representação
do mal, o
que elimina as
nuances concebidas em
seu caráter na
obra de Mário
de Andrade. Para visualizar
melhor as modificações,
vamos comparar um
trecho do filme
com a cena correspondente do filme.
Trecho do livro:
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de
nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em
que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.”
Foto e cena do filme Macunaíma
No trecho do
livro a personagem Macunaíma é
apresentada ao público
de for ma solene,
pois, logo na primeira
frase já é
anunciado o epíteto
de “herói de
nossa gente”. Além
disso , a descrição
tanto do cenário quanto
do herói que
acabou de nascer
é bastante abstrata:
tem-se informações de
que se situa
sesitua no “fundo
do mato virgem”
e fica próximo
ao rio Uraricoera.
Sobre Macunaíma, sabe-se
que é “preto retinto
e filho do
medo e da
noite”; no período
seguinte, informa-se o
leitor de que
o recém nascido é
“uma criança feia”.
Tal informação contrasta
com a anterior,
na qual, por
meio , de uma
frase com adjetivos preciosos
o herói é
apresentado em tom
elevado . No entanto,
sabe-se disso por
meio da voz vaga
de um narrador
em terceira pessoa,
ou seja, fica
aberta ao leitor
a construção visual
da cena narrada. Por
fim, nem mesmo
o batismo do
protagonista permite uma
visualização concreta, uma
vez que não se sabe quem o nomeia, sabe-se apenas que lhe chamaram de
Macunaíma.
A sensação de
alusão vaga não
permanece no filme
de Joaquim Pedro
de Andrade, pois,
ao contrário da literatura
que apenas sugere,
o cinema mostra,
ou seja, as
imagens trazem um
sentido mais concreto . Assim,
logo no início ,
a câmera focaliza
o cenário do
nascimento de Macunaíma:
destacando a terra e
a vegetação em
verde e amarelo .
As cores da
bandeira presentes no
cenário se aliam
à trilha sonora, cujo
refrão é “glória
aos homens-heróis dessa
pátria, a terra
feliz do Cruzeiro
do Sul”. A repetição
constante desse hino ,
composto pelo músico
Villa-Lobos, prepara o
espectador para a apresentação de
uma cena que
eleve as características do
Brasil. No entanto ,
essa primeira expectativa
é quebrada no momento
em que se
dá um close
no rosto da
índia parindo Macunaíma:
cena representada de forma
bastante cômica pelo ator Paulo José, que de forma debochada exclama: “Pronto ,
nasceu. ”. Aliás, toda a cena do nascimento de Macunaíma é cômica, chegando a beirar o ridículo . A apresentação debochada do nascimento do herói é corrente com a interpretação da obra que o diretor quer construir . João Pedro, ao filmar Macunaíma, definiu que o herói sem nenhum caráter é aquele que não possui valores morais . Sua escolha fica clara quando a índia nomeia o filho: “Fica sendo Macunaíma (À parte, para os espectadores).- Nome que começa com ma tem má sina. ”
Professora, a senhora pode postar aquela "apostila" sobre o trabalho de literatura?
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